Pressupostos teóricos
A par da importância capital do léxico de uma língua, uma vez que este representa incontestavelmente um autêntico patrimônio sociocultural de uma sociedade, encontram-se, por um lado, inúmeras dificuldades em se adquirir, memorizar e utilizar de modo adequado o conjunto de palavras do qual podemos dispor, conforme nossas necessidades de expressão e/ou comunicação. Acrescente-se a isso a própria impossibilidade de nos servir de todo o conjunto lexical constituinte de qualquer idioma, pois estamos falando de centenas de milhares de palavras. Por outro lado, as palavras fundamentais – ou seja, as mais freqüentes e usuais –, já podem e devem fazer parte da competência lexical de um falante de uma determinada língua que tenha um nível de escolaridade médio. Cabe aos estudos lexicográficos, dentre suas peculiaridades, nortear questões como a desse vocabulário fundamental, o que significa uma grande facilitação para as tarefas de aquisição e memorização do léxico, tanto no ensino /aprendizagem da língua materna como de uma língua estrangeira. Entretanto, ainda dentro desse vocabulário fundamental, percebemos sem esforços que uma palavra, básica para um aprendiz iniciante, não será certamente a mesma para quem se encontra em um nível intermediário ou avançado de aprendizagem, independente da faixa etária desse aprendiz. Por isso consideramos pertinente a elaboração de dicionários direcionados a públicos específicos. A finalidade desta pesquisa foi viabilizar a elaboração de uma série de dicionários temáticos ilustrados bilíngües (português-alemão, português-árabe, português-chinês, português-espanhol, português-francês, português-inglês, português-italiano e português-japonês). Cada uma dessas direções “português-língua estrangeira” visou três fases distintas da aprendizagem: a inicial, a intermediária e a avançada, com o propósito de apresentar uma nova proposta, inovadora no mercado: dicionários ilustrados que estimulem a codificação da comunicação na língua estrangeira e não apenas a decodificação da língua estrangeira. Primeiramente, foi realizado um levantamento de trinta áreas de interesse ou temas. Em seguida, chegou-se a um vocabulário fundamental da língua portuguesa, idealmente relacionado com cada tema. Uma terceira etapa pôde estabelecer uma subdivisão de todo o vocabulário, mais de 2500 entradas, nos três níveis de aprendizagem acima mencionados. Assim, a nomenclatura, constituída pelos temas e respectivas entradas, já subdividida em níveis, foi distribuída a uma equipe de 15 especialistas que, conforme sua especialidade, estabeleceram as equivalências para cada um dos oito idiomas. A mesma nomenclatura foi encaminhada ao(s) desenhista (s) para a confecção das ilustrações (realistas e estilizadas, conforme o caso). Após essa etapa, os docentes responsáveis efetuaram uma última revisão dos verbetes. Não seria exagero afirmar, como o fez Bogaards (1994), que o conhecimento da gramática e do léxico de uma língua é necessário e suficiente tanto à produção quanto à compreensão dos enunciados, uma vez que o léxico não consiste em um simples inventário de palavras, mas em um conjunto vivo de elementos e de regras que permitem todos os tipos de novas aplicações e cabe a ele a transmissão do significado da mensagem linguística. Constata-se, porém, por um lado, que inúmeras são as dificuldades em se adquirir e utilizar adequadamente o conjunto de palavras do qual podemos dispor, já que é impossível armazenarmos e nos servirmos de todo acervo lexical de uma língua, conforme nossas necessidades de expressão e/ ou comunicação. Por outro lado, o falante de uma língua poderá até dominar a gramática desse idioma mas nunca dominará todo seu léxico – objeto instável e em expansão, pois, por maior que seja o léxico de uma língua, o acervo efetivamente utilizado é reduzido, tanto no oral quanto no escrito. Também nunca se conseguirá descrever o léxico através de um dicionário de maneira exaustiva (BIDERMAN, 1996). Quanto ao ensino do vocabulário, durante muito tempo esbarrou-se em problemas epistemo e metodológicos. O desenvolvimento de uma semântica funcional, para buscar preencher as lacunas deixadas pelo estruturalismo, permitiu modificar a concepção do léxico, que passou a ser visto não mais como uma simples nomenclatura mas como um conjunto estruturado, orientando, assim, a Lexicologia e os métodos de aprendizagem de vocabulário. Sabe-se pouco sobre como o léxico é armazenado na memória humana e questões a respeito do armazenamento, do registro e da recuperação das palavras têm sido, muitas vezes, transferidas a psicólogos, em estudos sobre a memória. Acredita-se que o léxico se estruture na memória de tal maneira que permita sua retomada instantânea. E diversas análises psicolingüísticas confirmaram a necessidade de se ensinar o vocabulário de maneira ordenada, ressaltando a importância dos esquemas estruturadores para a memorização, sobretudo quando se tratar de adultos. Normalmente, há duas maneiras de se adquirir uma língua: a natural, que ocorre espontaneamente com as crianças no ambiente familiar, visando-se a língua apenas como instrumento para a comunicação; e a artificial, que ocorre com o estudo de um idioma por meio de gramáticas e dicionários. Estima-se que em uma língua haja cerca de duzentas mil palavras, número que pode chegar a quinhentas mil se incluirmos nomes próprios, termos técnicos etc. De acordo com Rey-Debove (1989), o usuário de um idioma, com nível de escolaridade médio, tem um vocabulário de aproximadamente vinte mil palavras divididas em vocabulário ativo, que o falante é capaz de codificar, e vocabulário passivo, que o falante é capaz de decodificar. O estudante geralmente utiliza um vocabulário restrito, repetitivo e pouco variado, mesmo quando tem uma razoável competência lexical, como se pode observar em exercícios feitos com base em campos associativos. Tal competência fica no nível da recepção passiva. Enquanto a criança assimila sua língua materna (LM) dentro do contexto, sem separar a forma do conteúdo, o aprendiz de uma língua estrangeira (LE) não raro terá a tendência de se concentrar na palavra isolada e considerar a estrutura do conjunto como fator secundário e destinado unicamente à transmissão de conteúdo. Segundo Laface (1982), o ensino do vocabulário é um processo gradativo e que deve ser associado aos contextos das áreas de especialidade. Os alunos devem ser estimulados a aplicar as definições e designações adquiridas em determinadas situações a outros contextos, redirecionando, adequando, deslocando, articulando a linguagem em diferentes ocasiões. Para Courtillon (1989), a aquisição do léxico, na infância, está ligada ao desenvolvimento cognitivo. Segundo ele, o léxico é o pivô da aquisição com base na qual se organiza a sintaxe e, mais tarde, a morfossintaxe. Já no início do aprendizado de uma LE a morfossintaxe importa menos que o léxico. A primeira etapa é a da aquisição lexical natural que está ligada às necessidades de produção. O capital lexical de uma classe aumenta rapidamente se as produções pessoais de cada grupo forem discutidas na sala de aula. O dicionário representa um papel importante na aprendizagem e o estímulo à criatividade e à liberdade é fundamental. A segunda etapa da aquisição lexical compreende a capacidade de se atribuir equivalências de sentidos. Tais equivalências podem ser paráfrases ou explicações, e podem partir tanto da palavra quanto do enunciado. Essa etapa começa apenas quando já se adquiriu o corpus necessário mínimo para a comunicação. Na terceira e última etapa, adquire-se a capacidade de comparar as unidades lexicais dentro de um paradigma. Bogaards (1994), por sua vez, divide a aprendizagem do léxico em duas partes : a apresentação e a semantização. Na primeira, ocorre uma operação semasiológica, quando o aluno vai da forma ao sentido, mas também pode ocorrer o contrário, o aluno indo do sentido à forma, operação esta chamada onomasiológica. A segunda parte pode acontecer de três maneiras : a) utilizando-se a LM; b) utilizando-se a LE; c) utilizando-se meios não-verbais. Corroborando a eficiência deste último item, Bogaards lembra uma experiência de Champagnol (1972) que confirmou ser vantajosa e positiva a utilização de materiais visuais. Nessa experiência, as palavras apresentadas com ilustrações eram assimiladas ao final de um mês de pesquisa, enquanto que as sem ilustrações eram assimiladas somente depois de três meses. Sobretudo até os anos 70, dezenas de inventários gerais de freqüência das línguas românicas foram publicados, com o objetivo de fornecer um núcleo lexical para estruturar o discurso e atenuar a inconsistência quase caótica dos métodos de ensino de línguas quanto à padronização do léxico a ser ensinado e o empirismo na escolha do vocabulário (JUILLAND, BRODIN & DAVIDOVITCH, 1970). Biderman (1998) explica que essas listas de freqüência foram baseadas em princípios lexicoestatísticos, considerados o método mais confiável para se selecionar o que é realmente usual em toda a extensão do léxico. Esses princípios confirmaram a existência de um núcleo lexical de aproximadamente quinhentas palavras que constituem de fato 80% de quaisquer textos de uma língua e mostraram que, no fenômeno da linguagem, há certa previsibilidade na recorrência das palavras devido à regularidade com que são usadas. A Universidade de Lisboa, de acordo com Nascimento, Rivenc e Cruz (1987), partindo de pesquisas anteriores realizadas para a elaboração do Francês Fundamental e do Espanhol Fundamental, procurou reunir e analisar dados para chegar à constituição de um vocabulário fundamental do Português, utilizando modelos de análise de estatística léxica. Organizou-se, ainda, 27 “Centros de Interesse” (termo cunhado pela pedagogia européia), que abrangeu temas diversos como corpo humano, vestuário, alimentação, cidade, vida sentimental, arte, tempo, religião, verbos referentes à vida mental etc. E justamente por tratar de temas muito variados, a pesquisa de freqüência, que chegou a um vocabulário de quinhentas a seiscentas palavras, podia servir a um nível modesto de competência. A variedade de temas, porém, conseguiu reunir um vocabulário de valor amplo e que pode ser usado em um grande número de situações. Segundo Biderman (1996), para constituirmos um vocabulário fundamental para o português do Brasil, considerando-se o trabalho da Universidade de Lisboa, devemos evidentemente tomar alguns cuidados, pois as diferenças culturais entre Portugal e Brasil aparecem e são refletidas pela língua. Em itens como “corpo humano” ou “saúde e doença”, há, por exemplo, mais semelhanças entre os vocabulários de Portugal e Brasil de que em itens como “vestuário”, “animais” ou “plantas”. A autora propõe, ainda, que, devido à heterogeneidade do universo e à complexidade da sociedade contemporânea, se adote um vocabulário fundamental de três mil palavras, diferentemente do Português Fundamental, que se baseou nos modelos Francês e Espanhol e considerou cerca de duas mil palavras. Mais recentemente, a utilização desses inventários para o ensino /aprendizagem do léxico passou a ser direcionada de acordo com o nível de aprendizagem do estudante, pois, se por um lado pode-se pensar que cada palavra, dependendo da situação de uso, tem a mesma importância na língua; por outro, constatou-se que é mais eficaz tratar do vocabulário de acordo com o nível do aprendiz. E como o vocabulário de uma língua é múltiplo e variado, seu ensino deve acontecer com o auxílio de materiais que permitam ao estudante descobrir os diferentes aspectos das unidades lexicais e familiarizar-se com elas, e que lhe dêem autonomia para enriquecer seu vocabulário. Ao invés de escolher um método de apresentação uniforme e rígido, o professor deve procurar os meios que lhe convêm para um vocabulário específico e dirigido a um nível determinado. Inegavelmente o dicionário é um dos meios a que se pode e deve recorrer. Mas, se por um lado, é inquestionável a utilidade do dicionário na aprendizagem como um instrumento indispensável à aquisição de conhecimentos lexicais em LE, por outro, ele também é considerado entediante – os alunos preferem usá-lo somente quando for extremamente necessário –, ou até um obstáculo intransponível que, devido a sua complexidade, inibe o aluno a consultá-lo. Na maioria dos casos, quem consulta um dicionário não quer despender muito tempo para sanar dúvidas e por isso acaba encontrando respostas inadequadas a suas questões. Além disso, a falta de conhecimento do aluno a respeito da obra lexicográfica (tipos de dicionário, sua elaboração, seu trabalho de pesquisa, detalhes sobre sua micro e macroestruturas etc.) prejudicam sua consulta. Esse tipo de informação pode ser encontrada – ou pelo menos deveria – nas introduções dos dicionários que, às vezes, são bem detalhadas e podem melhor orientar o aluno em sua consulta. A procura por uma palavra no dicionário, em geral, é genérica e a preocupação principal está em se encontrar sinônimos perfeitos substitutivos em qualquer tipo de discurso. Esse tipo de busca encontra obstáculos quando a linguagem estudada pelo aluno é a literária ou a técnico-científica. A primeira faz uso freqüente da metáfora e a segunda é uma área específica da linguagem, de tendência monossêmica. Mesmo a linguagem coloquial é muitas vezes ricamente conotativa. Os dicionários não são manuais de língua, mas têm uma função didática e por isso são dirigidos a um público determinado. Os monolíngües, geralmente os mais indicados por pesquisadores e professores, contudo não são interessantes para o estudante de uma LE, pois a falta de contrastividade constitui um problema. Esse aluno poderá entender com dificuldade as explicações, as informações gramaticais e os exemplos apresentados pelo dicionário monolíngüe, bem como não solucionar problemas de compreensão (de falsos cognatos, por exemplo), além de não encontrar nele o equivalente de um conceito próprio da cultura de sua LM. Existem, todavia, problemas também com os dicionários bilíngües. A inadequação ocorre quando os itens comparáveis nas duas línguas pertencem a dois universos semânticos diferentes, quando palavras comuns são polissêmicas ou quando o estudante não conhece o referente, mesmo em sua LM. Apesar dos problemas e conflitos lexicográficos insolúveis em sua totalidade, deve-se lembrar que esses dois tipos de dicionários na verdade se complementam. Outro tipo de dicionários, direcionado a uma determinada faixa etária, existe há muito tempo e tem considerável produção na França. O adulto e a criança têm competências lingüísticas diferentes, o dicionário deve complementar seus conhecimentos para, de acordo com a necessidade de cada um, permitir uma melhor utilização do léxico. No aspecto quantitativo, o dicionário dirigido a crianças não deve necessariamente ser mais curto. O discurso dirigido a crianças deve se desenvolver mais detalhadamente. Ao contrário do que imagina o senso comum: enunciados mais longos são mais fáceis de serem compreendidos que os mais concisos, já que a compreensão está intimamente ligada à redundância da linguagem (REY-DEBOVE, 1989). Por outro lado, é importante ressaltarmos a necessidade de um melhor conhecimento das dimensões do repertório lexical do aprendiz de LE, de acordo com seu nível e seu tipo de estudo, não para induzi-lo à memorização de todas as palavras contidas nos métodos de ensino, mas para facilitar sua aprendizagem, objetivando acelerar suas aquisições lexicais. Um aprendiz de LE, sobretudo quando aprende um idioma de menor veiculação em seu país de origem – por exemplo, o alemão, o francês e o italiano no Brasil (nem mencionemos o caso do árabe e do japonês!), e mesmo quando se trata do inglês e do espanhol –, não dispõe, como os nativos, de fontes fora da sala de aula que possam enriquecer seu léxico: diálogo com familiares, leituras em geral, televisão, rádio etc. Essa carência do ambiente usual da língua fora da escola deve ser atenuada; para isso é preciso ajudar o aluno a desenvolver sua capacidade de inferência na aquisição de novas palavras, com base em contextos variados. Os falantes ou aprendizes de uma língua buscam no dicionário o enriquecimento do conhecimento lexical, procurando o significado, a grafia correta ou informações gramaticais das palavras. No entanto, como o dicionário não descreve completamente o léxico e não é uma autoridade capaz de perpetuar os significados de uma língua, ele sozinho não é a solução para os problemas relacionados à aprendizagem do léxico. Acreditamos, por fim, que dicionários e métodos de ensino direcionados devem andar juntos nessa busca por soluções. |